Vacinação: Como o programa da poliomielite chegou a todas as crianças da Região Africana

O programa de erradicação da poliomielite tem sido surpreendentemente dinâmico: as estratégias utilizadas variam entre regiões, países e até aldeias. A adaptação tem sido vital para o sucesso. 

 

O tamanho enorme do continente, a sua diversidade geográfica, cultural e linguística, os níveis elevados de insegurança e de migração, assim como os fracos sistemas de saúde e o mau saneamento estão entre os factores únicos que moldaram a resposta à erradicação da poliomielite na região. 

 

Estes desafios impulsionaram a inovação e a criatividade, diz o Dr. Pascal Mkanda, Coordenador do Programa de Erradicação da Poliomielite no Escritório Regional da OMS para a África (OMS/AFRO). “O que tem sido realmente africano é a nossa forma inovadora de fazer as coisas.”

O vacinador Adama Traoré viaja distâncias enormes na sua bicicleta para chegar às comunidades na região de Kayes no Mali ocidental. Traz consigo um refrigerador cheio de vacinas básicas - tosse convulsa, tuberculose infantil, tétano, poliomielite, sarampo e difteria, hepatite, diarreia, pneumonia, febre amarela e meningite, 2020. ©️ UNICEF

Os vacinadores viajam de piroga com refrigeradores cheios de vacinas contra a poliomielite numa lagoa no distrito de Adiaké, na Côte d’Ivoire, 2009. ©️ UNICEF

Chegar a todas as crianças para além da vacinação de rotina 

Antes do início das campanhas de vacinação em massa contra a poliomielite na Região Africana, em 1996, a única forma de proteger uma criança contra a doença era através de programas de vacinação de rotina, ministrados através de unidades de saúde ou postos de proximidade. Embora bem-sucedidos, muitas comunidades eram de difícil acesso.   

Um responsável pela promoção da saúde atravessa uma ponte improvisada em direcção a uma aldeia durante um dia nacional da vacinação no Gana oriental, 2013. ©️ UNICEF
Uma equipa de vacinação móvel parte de um ponto de vacinação numa quinta, tendo percorrido 1500 quilómetros para vacinar 2400 pessoas durante uma campanha de proximidade na Namíbia, 2006. ©️️ UNICEF

Para chegarem a mais crianças em zonas mal servidas, as equipas de poliomielite aumentaram a distribuição da vacina oral contra a poliomielite (VOP), juntamente com outras vacinas, utilizando uma estratégia conhecida como “intensificação periódica da vacinação de rotina” (PIRI). As equipas também realizaram actividades periódicas de vacinação móvel e de proximidade em locais de difícil acesso.

 

Em 1996, o Quénia, a República Unida da Tanzânia e o Uganda colocaram-se na vanguarda relativamente à erradicação da poliomielite ao implementarem actividades suplementares de vacinação, que incluíam dias nacionais e subnacionais de vacinação e campanhas de reforço para além da vacinação de rotina. Estas campanhas de vacinação em massa procuravam administrar doses suplementares de VOP a todas as crianças com idade inferior a cinco anos, independentemente de terem sido anteriormente vacinadas ou não. 

Dia nacional da vacinação no Gana, 2003 © Rotary International
Cartazes do dia nacional da vacinação na Nigéria, 2005 © Rotary International
Cartazes do dia nacional da vacinação na Nigéria, 2005 © Rotary International

Nigeria was the first country to implement house-to-house campaigns in the early 2000s. ©️  WHO

Chegar a crianças em comunidades distantes

Embora as actividades suplementares de vacinação tenham sido inicialmente realizadas através de locais fixos que as famílias tinham de visitar, a partir de 1999 várias inovações levaram as vacinações directamente às crianças, garantindo que até as mais vulneráveis eram vacinadas. 

 

“A Nigéria foi o primeiro país africano a implementar campanhas de vacinação porta-a-porta”, diz o Dr. Sam Okiror, que trabalha no Programa de Erradicação da Poliomielite na OMS/AFRO desde os finais da década de 1990. “Vacinámos mais 40% de crianças em 15 estados do que fazíamos utilizando a abordagem de locais fixos.” “Após este sucesso utilizámos as campanhas porta-a-porta em todo o lado”, diz o Dr. Sam.

A Nigéria foi o primeiro país a implementar campanhas porta  a porta no início dos anos 2000. ©️  WHO

Após se focarem inicialmente em campanhas nacionais, as equipas da poliomielite perceberam que devido às fronteiras porosas da África, era frequente a grande quantidade de pessoas que as atravessava não esta a ser vacinada. Por isso, em 2000, dezenas de milhares de voluntários e de profissionais de saúde foram de porta em porta por toda a região ocidental e central do continente africano, consistindo em 17 países, e vacinaram 67 milhões de crianças, incluindo dois milhões que nunca tinham sido vacinadas.

 

Este evento colossal marcou o início de muitas campanhas de vacinação sincronizadas: campanhas simultâneas em massa que visavam milhões de crianças em vários países para criarem uma imunidade populacional suficiente para parar a transmissão em toda a Região.

Jornadas nacionais e suplementares de vacinação na RDC, 2001. ©️ OMS

Kofi Annan, na altura o Secretário-Geral das Nações Unidas, negoceia tréguas para a vacinação contra a poliomielite, com equipas móveis a aproximarem-se de aldeias de barco, RDC, 1999. ©️ OMS

Chegar a crianças em zonas de conflito

Em 1999, Kofi Annan, na altura o Secretário-Geral das Nações Unidas, negociou o primeiro acordo de cessar-fogo na África entre o governo da RDC e as forças rebeldes para permitir a realização de campanhas nacionais de vacinação em todo o país. Desde então, foram negociados vários acordos de cessar-fogo e de dias sem conflitos, chamados “dias de tranquilidade”, ao longo de zonas de conflito para a realização de campanhas de vacinação em grande escala. 

 

Quando não existiam canais de negociação com grupos rebeldes, como no estado de Borno, na Nigéria, em 2013, foram delineadas estratégias para “chegar a todas as povoações”. Trabalhando com a segurança do governo, agentes de inteligência e grupos locais, foram identificadas janelas de tranquilidade em que as equipas de vacinação conseguiam entrar rapidamente nas povoações para vacinarem as crianças e sair sem serem detectadas. 

 

Nas zonas de conflito que permaneciam impenetráveis, existia o risco de os cuidadores saírem com as suas crianças não vacinadas para procurarem alimentos e bens básicos, levando o vírus para as zonas circundantes. Por isso, foram colocadas “equipas de trânsito” nas rotas utilizadas para entrar e sair das zonas pouco seguras, assim como nos mercados, pontos de travessia nómadas, pontos de controlo e zonas fronteiriças para vacinarem as crianças e procurarem sinais de paralisia.

 

Para impedir que a poliomielite “escape” das populações encurraladas, as equipas de poliomielite realizaram, utilizando uma estratégia conhecida como “barreira de protecção”, campanhas de vacinação mais intensas periodicamente nas áreas adjacentes às zonas de conflito, criando assim uma “barreira” de imunidade populacional. 

Dinamizadoras voluntárias da comunidade desempenham um papel fundamental para aumentar a sensibilização e a aceitação das vacinas contra a poliomielite no estado de Kano, na Nigéria, 2019. © Andrew Esiebo/Rotary International

Combater a recusa da vacinação

Em todo o continente africano, os esforços de vacinação foram dificultados por focos de recusa da vacinação na década de 1990 e de 2000 devido a rumores e desinformação. No entanto, no norte da Nigéria, este problema foi ainda mais grave: em alguns estados do norte as vacinações contra a poliomielite foram interrompidas durante quase dois anos entre 2003 e 2004. Esta situação levou ao reaparecimento de casos de poliomielite, que se expandiram por todo o país e pelo resto do continente, resultando em surtos de poliomielite selvagem noutros 20 países africanos.  

 

A recusa da vacinação motivou uma grande alteração nas estratégias de comunicação e de mobilização social em toda a Região Africana, que incluíram a criação de fortes ligações com os líderes tradicionais e religiosos.

Os vacinadores preparam-se para as Jornadas Nacionais de Vacinação na Côte d’Ivoire, utilizando cartazes, t-shirts, capacetes e bicicletas identificados e doados pelo Rotary para a publicitação do evento. © Rotary International

As equipas de poliomielite começaram a responder a outras necessidades comunitárias ao oferecerem, para além das vacinas contra a poliomielite, artigos domésticos básicos, como sabão, açúcar ou massa, assim como cuidados de saúde, o que criou uma procura de vacinas para as crianças por parte dos cuidadores. Exposições nas estradas criaram ainda mais visibilidade e sensibilização relativamente à poliomielite e os “dias de campos sanitários” ofereceram tratamentos básicos durante as campanhas em massa. As equipas também trabalharam exaustivamente com redes de líderes religiosos, escolas Qur’anic, associações de mulheres e motociclistas, entre outros, para espalharem mensagens sobre a poliomielite e para reforçarem a confiança com a comunidade.

Dinamizadoras voluntárias da comunidade desempenham um papel fundamental para aumentar a sensibilização e a aceitação das vacinas contra a poliomielite no estado de Kano, na Nigéria, 2019. © Andrew Esiebo/Rotary International

Em alguns locais, especialmente no norte da Nigéria, pais cépticos convenciam os vacinadores voluntários que iam de porta em porta a marcarem os dedos dos seus filhos, um sinal de que tinham sido vacinados, sem estes terem recebido a vacina. Estas zonas continuaram a enfrentar surtos de poliomielite. 

 

As equipas recrutaram a ajuda de crianças mais velhas que – em troca de pacotes de leite, doces ou apitos – juntavam os seus irmãos mais novos e amigos da faixa etária desejada para serem vacinados sob observação de funcionários da poliomielite dos quadros superiores. A “vacinação contra a poliomielite observada directamente” reduziu a intimidação sofrida pelos vacinadores, assim como a tentação de os membros das equipas falsificarem taxas de vacinação. 

Equipas de vacinação registam as vacinações contra a poliomielite, enquanto oferecem incentivos como pacotes de leite, sabão, doces e apitos em Maiduguri, na Nigéria, 2020. ©️ Andrew Esiebo/OMS

Acredita-se que esta estratégia tenha quebrado as últimas cadeias de transmissão do poliovírus nas comunidades mais resistentes à vacinação da Nigéria, onde os últimos casos de poliovírus selvagem na região foram reportados em 2016.  

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