Como certificar uma região como estando livre do poliovírus selvagem: entrevista com a professora Rose Leke
Depois de a Assembleia Mundial da Saúde ter aprovado uma resolução para erradicar a poliomielite em todo o mundo, em 1988, a Comissão Mundial de Certificação assumiu a liderança no estabelecimento de um processo formal de certificação das regiões livres de poliomielite, solicitando a cada uma das seis regiões da OMS que criasse uma Comissão Regional de Certificação.
Nesse ano, a Directora Regional da OMS para a África criou a Comissão Regional Africana para a Certificação da Erradicação da Poliomielite (ARCC): um órgão independente de 16 pessoas encarregue de supervisionar este processo e, mais tarde, actividades de contenção na Região Africana.
Embora a certificação da erradicação do poliovírus selvagem seja feita a nível regional, e não nacional, os países podem ser declarados como “livres do poliovírus selvagem” quando não tiverem sido notificados quaisquer casos de poliovírus selvagem durante três anos consecutivos e se cumprirem os padrões mundiais de vigilância e a vacinação de rotina. Assim que todos os países da Região tiverem cumprido os critérios e sido declarados como estando livres do poliovírus selvagem, toda a Região pode ser declarada livre de poliovírus selvagem.
A professora Rosa Leke, especialista em doenças infecciosas, preside à ARCC desde a criação da mesma em 1998. Enquanto mulher pioneira na área da saúde mundial, Leke envidou todos os esforços ao longo da sua carreira para melhorar a representação das mulheres nos cargos de responsabilidade na área da saúde e das ciências. Em 2018, foi uma das nove mulheres homenageadas com o prémio “Heroína da Saúde”, em reconhecimento do seu notável contributo para os cuidados de saúde.
Professora Rose Leke, Presidente da Comissão Regional Africana de Certificação da Erradicação da Poliomielite © OMS/M. Henley
Como se envolveu na causa da ARCC?
Quando fui convidada para integrar a ARCC em 1998, não estava envolvida em nenhuma iniciativa relacionada com a poliomielite. Mas conhecia os efeitos devastadores que a poliomielite estava a causar no continente. Tive um sobrinho que ficou paralisado devido à poliomielite e sofreu lesões cerebrais, e outro familiar que contraiu a doença e que continua ainda hoje a servir-me de inspiração. Na altura, via-se muitos jovens paralisados nas ruas. Hoje em dia, isso já não acontece.
Que momentos destaca na jornada para a erradicação da poliomielite em África?
A Iniciativa Mundial de Erradicação da Poliomielite (GPEI) é um programa extremamente bem coordenado, com padrões muito elevados que os países devem assegurar. Há uma forte coordenação desde a sede ao nível distrital, bem como dados em tempo real e uma rede de vigilância que permite identificar rapidamente os países que estão a ficar para trás e dar-lhes orientações para lidarem com o problema.
Em 2017, detectámos falhas persistentes nos sistemas de vigilância e na cobertura vacinal de rotina da África do Sul e tivemos de revogar o estatuto de país livre do poliovírus selvagem conquistado em 2006. É o único país na África cujo estatuto foi revogado. Inicialmente, foi um choque, mas responderam rapidamente ao implementar medidas para reaver o seu estatuto de país livre do poliovírus selvagem em 2019. Isto mostra que nenhum país se pode dar ao luxo de descansar à sombra dos louros.
O facto de a Nigéria ter sido declarada como país livre do poliovírus selvagem também tem um enorme significado. Foi um longo caminho para chegar lá. Quando a Nigéria não notificou quaisquer casos de poliovírus selvagem durante dois anos, entre 2014 e 2016, ficámos apreensivos, mas satisfeitos. Estávamos tão perto da erradicação da doença na Região e estava tudo a correr tão bem, até que foi novamente notificado um caso de poliovírus selvagem na Nigéria, em Agosto de 2016, e o processo de certificação foi colocado em segundo plano.
A resposta da Nigéria aos surtos no país tem sido extraordinária. O país está empenhado e fortemente envolvido no combate à doença. Nos estados de Sokoto e Kano, onde estive recentemente para uma visita de verificação no terreno, bem como nos outros estados, todos os intervenientes – sejam eles funcionários públicos, líderes tradicionais, pessoal da saúde e equipas de apoio no terreno, agentes de saúde e informadores a nível comunitário, sobreviventes da poliomielite e parteiras tradicionais – estão fortemente envolvidos no combate à doença. As tecnologias inovadoras que surgiram têm sido igualmente incríveis. O Centro de Operações de Emergência nigeriano oferece uma estrutura bem coordenada que está na origem do sucesso do país. Vários outros programas de combate a doenças em África utilizam-na como exemplo.
Membros da Comissão Regional Africana para a Certificação da Erradicação da Poliomielite (ARCC) durante uma reunião anual em Yaoundé, nos Camarões, em 2017. A professora Rose Leke, presidente da ARCC, encontra-se na fila da frente, a quarta à esquerda. © OMS
O Dr. Zakaria Maiga, membro da ARCC, questiona o pessoal da saúde sobre a cadeia de frio utilizada na luta contra a poliomielite durante uma visita de verificação da ARCC à Nigéria, em 2019. © ARCC
O que a mantém motivada enquanto presidente da ARCC? Já teve de fazer sacrifícios?
Quando começámos, o nosso objectivo era erradicar o poliovírus selvagem até 2000. A ideia de sermos bem-sucedidos manteve-me motivada e continua a ser uma fonte de motivação. Tudo isto, por vezes, requer um enorme sacrifício. Enquanto voluntários, os membros da ARCC não são remunerados e já cheguei a prescindir de consultorias para fazer este trabalho. O meu marido, os meus filhos e os meus netos podem confirmá-lo; houve uma quantidade significativa de viagens e reuniões envolvidas. Mas não me arrependo de ter dedicado tempo a esta causa.
Quando a Dr.ª Moeti foi nomeada Directora Regional do Escritório Regional da OMS para a África em 2011, a motivação para continuar foi ainda maior: Queria apoiar uma colega. No início, eu era a única mulher na Comissão Mundial de Certificação. A Comissão supriu este desequilíbrio e agora somos duas mulheres num total de seis membros. Precisamos de mais mulheres em cargos de alto nível no continente africano.
Por último, citaria as competências e o compromisso inexorável do Dr. Bruce Aylward, que presidiu à parceria da GPEI entre 1998 e 2014 e com quem trabalhei de perto. Inspirou todas pessoas envolvidas no combate à poliomielite a superar todos os desafios e a nunca baixar os braços.
A professora Leke (última à direita) com os restantes membros da Comissão Mundial de Certificação e o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus (no centro), Director-Geral da Organização Mundial da Saúde e presidente do Conselho de Supervisão da Poliomielite da Iniciativa Mundial de Erradicação da Poliomielite (GPEI). © OMS
Qual é, na sua opinião, o legado da erradicação da poliomielite?
A resposta à poliomielite trouxe muitos técnicos qualificados aos sistemas de saúde de África. A GPEI abriu caminho para o estabelecimento de relações estreitas entre curandeiros tradicionais e líderes comunitários e ajudou a reforçar os sistemas que notificam outras doenças. A rede de laboratórios para a poliomielite está a ser utilizada para outras doenças, dando à Região os meios para realizar todos os tipos de diagnósticos. Constatamos, além disso, que a pessoa do centro de saúde que era responsável pela notificação de casos de poliomielite monitoriza também agora muitas outras doenças.
Depois de declarar a África como livre do poliovírus selvagem, a ARCC vai continuar a trabalhar com os países para assegurar que estes mantêm uma vigilância de boa qualidade e melhoram a vacinação de rotina, de forma a garantir que a imunidade da população permanece o mais elevada possível. Também continuaremos a apoiar os países para que possam continuar a monitorizar a imunidade da população de forma a prevenir a importação de poliovírus selvagem de regiões fora da África, mantendo simultaneamente sob controlo a ameaça dos poliovírus circulantes derivados de vacinas. O nosso trabalho continuará até que todas as formas de poliomielite sejam erradicadas a nível mundial.
A professora Rose Leke preside a uma delegação da ARCC na África do Sul durante uma missão de sensibilização de alto nível sobre actividades para a erradicação da poliomielite em Outubro de 2018. A professora Leke ao lado do antigo Ministro da Saúde sul-africano, o Dr. Aaron Motsoaledi. © OMS
Numa reunião da ARCC em Dacar, no Senegal, em 2018. © OMS