Borno: A última fronteira do poliovírus selvagem em África
Quando Aisha levou o seu filho Busami Modu para a casa da sua avó em Kuya, uma aldeia no estado de Borno, na Nigéria, despediu-se de um rapazinho saudável e feliz. “Uma beleza de pasmar”, diz ela. Quando o voltou a ver, estava paralisado e incapaz de andar.
Quando a doença atingiu Busami, pensava-se que o poliovírus selvagem tinha acabado em África em 2016. O caso dele foi um golpe para todos no norte da Nigéria, porque tinham travado uma batalha difícil para livrar a sua região da poliomielite. A decepção ecoou muito para além das fronteiras da região. Os olhos do mundo inteiro estavam postos nos estados do norte da Nigéria. Borno, em particular, era a última fronteira do poliovírus selvagem em África, e uma das últimas a nível mundial.
Vista aérea do Estado de Borno © Andrew Esiebo/OMS
Vista aérea de Maiduguri, a maior cidade do Estado de Borno © Andrew Esiebo/OMS
Tal como no resto do mundo, a luta do norte da Nigéria para erradicar a poliomielite é uma história de inúmeros desafios, reveses e desilusões, mas em última análise de esforços colossais, inovações e uma perseverança sem limites.
Paralisada em criança pela poliomielite, Mariam Umar, do Estado de Kano, trabalha há sete anos como mobilizadora comunitária com o programa de erradicação da poliomielite. “Ajudo a mobilizar as pessoas, para que a minha comunidade aceite a vacina quando virem a minha situação”. © Andrew Esiebo/OMS
Os esforços de erradicação da poliomielite neste canto da Nigéria começaram lentamente, mas no início dos anos 2000, já havia progressos. Um terrível incidente inverteu esta situação em 2003. Circularam rumores em Borno, Kano e noutros estados do Norte de que as vacinas contra a poliomielite eram um estratagema para esterilizar as crianças muçulmanas, levando a boicotes generalizados da vacina.
“O nosso povo não concordou com esta vacinação”, conta Aminu Ahmed, que preside à Associação das vítimas da poliomielite da Nigéria. “Os homens temiam que as suas esposas não pudessem ter filhos”.
Perante a reacção negativa, as campanhas de vacinação contra a poliomielite foram completamente canceladas. Os casos de poliomielite dispararam na Nigéria e o vírus espalhou-se por todo o continente; acabaram por ser infectados 20 países. Mesmo quando as campanhas de vacinação foram retomadas, as comunidades continuavam relutantes em aceitar a vacinação dos seus filhos. Em 2009, quase um quarto dos casos de poliomielite selvagem no mundo localizavam-se na Nigéria.
Aminu Ahmed criou a Associação das vítimas da poliomielite no estado de Kano em 2004. “Havia 150 casos em Kano, quando o país inteiro tinha 400 casos”, recorda ele. “Queríamos utilizar a associação para sensibilizar a comunidade.” Convenceram os membros relutantes da comunidade a permitir que os seus filhos fossem vacinados, perguntando-lhes: “Querem que o vosso filho se torne como eu?”. Hoje, a associação trabalha com o Rotary, a UNICEF, a OMS e outros parceiros em 20 estados do norte da Nigéria. © Andrew Esiebo/OMS
Em 2004, um membro da Jama’atu Nasril Islam (sociedade para o apoio ao Islão) perguntou se o programa de vacinação do governo infringia as leis do Islão. Em resposta, o governo federal criou um Comité de verificação da vacina oral contra a poliomielite (VOP), composto por peritos e líderes tradicionais. O falecido Shehu fez parte da equipa de 23 pessoas que visitou fábricas da VOP na Índia, Indonésia e África do Sul, para confirmar que as vacinas contra a poliomielite eram fabricadas de uma forma que respeitava a tradição halal muçulmana. © Andrew Esiebo/OMS
Lentamente, esta relutância foi-se transformando em aceitação e finalmente em apoio generalizado à vacinação. Isto aconteceu graças ao trabalho de sobreviventes da poliomielite como o Sr. Ahmed, e em grande parte aos líderes tradicionais e religiosos da região. Depois do boicote em 2004, estes líderes assumiram a defesa da erradicação da poliomielite.
“Todos nós intervimos, desde a nossa hierarquia superior até aos trabalhadores, para garantir a vigilância, de modo a não perdermos um único caso”, disse Sua Alteza Real, o falecido Shehu de Bama, Alhaji Kyari Umar Ibn Umar El-Kanemi, quando foi entrevistado em Fevereiro de 2020. Enquanto presidente do Comité de líderes tradicionais do Norte para a prestação de cuidados de saúde primários, e do Fórum de líderes tradicionais do Grupo de trabalho estatal sobre vacinação, ficou conhecido pela sua dedicação absoluta. O Shehu, que nunca faltou a uma única reunião, defendeu o envolvimento da comunidade como forma de aumentar a procura de vacinação.
Infelizmente, à medida que o apoio à erradicação da poliomielite na região crescia, aumentava também a insegurança, alimentada pela insurreição. Infelizmente, vários vacinadores contra a poliomielite perderam a vida enquanto trabalhavam na administração de vacinas; apesar disso, os trabalhadores na linha da frente continuaram corajosamente o seu trabalho. Apesar da sua perseverança, os vacinadores não conseguiam chegar às localidades ocupadas por insurrectos.
Em Fevereiro de 2013, Abbas Ibrahim, coordenador de vacinas da OMS no estado de Kano, estava a organizar uma campanha de vacinação de reforço com colegas no seu gabinete da unidade básica de saúde Kauyen Aliu, quando ouviu tiros. Deitado no chão e aterrorizado, sentiu as balas passar por cima da sua cabeça e atingir cinco colegas, matando três deles. “Sou o único que não foi alvejado”, diz ele. Depois do ataque, o Sr. Ibrahim regressou ao trabalho. “Talvez Deus queira que eu realize algo que ainda não realizei… Por isso, sinto que é meu dever continuar a fazer o trabalho de bem”, afirma ele. © Andrew Esiebo/OMS
Em 2012, havia 122 casos de poliomielite selvagem na Nigéria, que representavam mais de metade do número mundial de casos de poliomielite. As equipas de vacinação contra a poliomielite lutaram para alcançar o maior número possível de crianças. A sua coragem parecia ter valido a pena. O número de casos de poliovírus selvagem foi reduzido para 53 em 2013 e para seis em 2014. Sem casos notificados em 2015, o país era elegível para ser retirado da lista de países endémicos da poliomielite.
No entanto, a celebração foi curta: em Agosto de 2016, quatro casos de poliovírus selvagem, incluindo o de Busami Modu, foram detectados no Estado de Borno.
“O ressurgimento do poliovírus selvagem foi um enorme revés para todos nós – especialmente para aqueles que tinham dedicado anos à sua erradicação”, diz Peter Hawkins, Representante da UNICEF para a Nigéria.
Apesar da decepção, a notícia não era totalmente inesperada. Naquele ano, a insurreição tinha-se espalhado pelo estado. Milhares de crianças falharam as suas vacinas, uma vez que as equipas de vacinação não conseguiam chegar às comunidades em áreas sob o controlo dos insurrectos. Era necessária uma nova estratégia.
“Sabíamos que as velhas soluções não iriam resultar. Tivemos de abordar o problema sob uma nova perspectiva”, diz o Dr. Audu Idowu, que foi nomeado coordenador estatal da OMS para Borno em Setembro de 2016, para liderar a resposta contra este novo surto de poliovírus selvagem.
“A nossa estratégia na altura baseava-se em vacinadores que iam de porta-a-porta para vacinar crianças em campos de deslocados internos e aldeias acessíveis”, diz o Dr. Sule Mele, director executivo da agência estatal de desenvolvimento dos cuidados de saúde primários do Estado de Borno. “Simplesmente não era suficiente, dadas as circunstâncias excepcionais que Borno enfrentava.” © Andrew Esiebo/OMS
“Os líderes políticos expressaram o seu apoio à tarefa que tínhamos pela frente, sem quaisquer reservas. Este compromisso incondicional vindo de cima “reflectiu-se até às comunidades”, diz o Dr. Faisal Shuaib, director executivo da agência nacional de desenvolvimento dos cuidados de saúde primários (NPHCDA) da Nigéria. “Os líderes tradicionais, os líderes religiosos”, dessas comunidades, “inspiraram-se verdadeiramente na liderança do país”.
Os líderes nacionais, os funcionários estatais, as autoridades sanitárias do governo local, os militares, os líderes tradicionais e religiosos, os sobreviventes locais da poliomielite e os profissionais de saúde na linha da frente juntaram-se todos por detrás de um objectivo comum. A UNICEF destacou mais de 4000 mobilizadores comunitários para ajudar a angariar apoio à vacinação contra a poliomielite nas comunidades. Todos começaram a trabalhar, concebendo e implementando a nova abordagem, coordenada pelo centro nacional de operações de emergência contra a poliomielite (NEOC). “A abordagem usada pelo NEOC para coordenar a resposta foi agressiva, e o empenho de todos os nossos parceiros foi realmente fenomenal”, diz o Dr. Usman Adamu, gestor de incidentes do NEOC.
Tínhamos de chegar a todas as crianças – mesmo onde a insegurança grassava. Em áreas onde os vacinadores civis ainda podiam ir, grupos de segurança locais armados para proteger os profissionais de saúde – começaram a escoltar os vacinadores. Em áreas onde não podiam, estes grupos fizeram eles próprios a vacinação.
“Formamos os militares para que possam efectuar a vacinação e executar uma vigilância activa em áreas completamente inacessíveis”, explica o Dr. Audu Idowu, coordenador estatal da OMS para Borno, falando da estratégia “alcançar as crianças inacessíveis” utilizada a partir de 2016 no estado. © Andrew Esiebo/OMS
As equipas de combate à poliomielite também se instalaram nos limites destas áreas inseguras. Aí, poderiam vacinar crianças à medida que estas cruzassem esses limites, e também alistar homens e mulheres para detectar e notificar casos de poliomielite e de outras doenças nas áreas sob controlo dos rebeldes. Nos campos para pessoas deslocadas internamente, as equipas de combate à poliomielite redobraram os seus esforços, desde a realização de vacinações até à recolha de amostras de fezes nas crianças para serem testadas à medida que chegavam.
Depois de ter visitado curandeiros tradicionais e espirituais “em vão”, Aisha acabou por descobrir a causa da paralisia do seu filho poucos dias depois de chegar a um campo de deslocados, onde tinha sido criado um sistema de vigilância estatal. Menos de três semanas após o início da paralisia de Busami Modu, a família teve uma confirmação laboratorial do poliovírus selvagem. Quatro anos após o seu diagnóstico, Busami Modu continua a ser a última criança paralisada pelo poliovírus selvagem na Nigéria e, portanto, em África. “É uma grande notícia para todos nós nesta comunidade”, diz Aisha, depois de saber que a poliomielite selvagem estava à beira da erradicação em África.
Quando a Comissão regional africana de certificação (ARCC) da erradicação da poliomielite confirmou, a 18 de Junho de 2020, que a Nigéria estava livre de poliomielite selvagem, o orgulho de ter finalmente vencido a poliomielite selvagem, contra todas as adversidades, foi partilhado por todos na Nigéria.
Actualmente, as infra-estruturas, as estratégias, as inovações, as redes e, sobretudo, a resiliência, que o programa de luta contra a poliomielite deixa como herança, estão a ajudar o país, e a Região Africana, a enfrentar a COVID-19. Poucas partes do mundo sabem tão bem como os estados do norte da Nigéria o que é preciso para combater uma doença insidiosa.
Os monitores de vigilância comunitária que vivem em áreas inacessíveis recebem orientações e formação sobre a detecção das seis “grandes doenças”, incluindo a poliomielite, o sarampo, a cólera e a meningite. As equipas de combate à poliomielite fora das zonas de conflito seguem de perto as actividades de vigilância através dos telemóveis que lhes são dados, o que também ajuda a equipa de combate à poliomielite a mapear casos destas doenças. Actualmente, existem mais de 1200 voluntários. © Andrew Esiebo/OMS
Na fronteira com os Camarões, equipas de trânsito administram vacinas às famílias que escaparam à insurreição ou às inundações no estado de Borno e estão a regressar às suas casas. © Andrew Esiebo/OMS
Um vacinador em Maiduguri recolhe materiais para uma campanha porta-a-porta de vacinação contra a poliomielite, incluindo caixa de vacinas, uma folha de registo, um telemóvel e um marcador. © Andrew Esiebo/OMS
Uma equipa de vacinadores num mercado durante uma campanha de vacinação contra a poliomielite no estado de Kano. © Andrew Esiebo/OMS