Sete formas como a África beneficiou com a erradicação da poliomielite
Em 2020, a pandemia de COVID-19 vitimou, até ao momento, milhares de pessoas em toda a África. As equipas da poliomielite no continente – a extensa rede de profissionais de saúde, peritos laboratoriais, gestores de dados e voluntários comunitários dedicados à luta contra a poliomielite – foram das primeiras no terreno e tiraram partido da sua experiência para apoiar a resposta e ajudar a conter os surtos nacionais.
Esta não é a primeira vez que o programa da poliomielite se redireccionou rapidamente para dar resposta a uma ocorrência de saúde pública de grande dimensão ou emergente. Desde a década de 1990, o programa da poliomielite trouxe o maior influxo de conhecimentos especializados e financiamento no âmbito da saúde pública em todos os países africanos. As equipas e infra-estruturas da resposta à poliomielite não serviram apenas para a luta contra esta doença. Também serviram como alicerce para os sistemas de saúde pública e as respostas a surtos em África.
As formas mais significativas como a resposta à poliomielite mudou a saúde pública em todo o continente foram:
Um responsável pela vigilância da poliomielite descarrega dados dos telemóveis de vacinadores no final do dia da campanha de vacinação da poliomielite em Jere, na Nigéria, 2020. ©️ Andrew Esiebo/OMS
1.
Demonstrando a importância dos dados para a erradicação das doenças
O programa da poliomielite reconheceu o valor importantíssimo dos dados na erradicação das doenças e investiu fortemente em sistemas de recolha, gestão e uso de dados. Isto inclui a recolha de informações sobre as comunidades que precisam de vacinação, o transporte de amostras laboratoriais, as deslocações dos profissionais de saúde e as reservas de vacinas. Segundo a Dr.ª Ticha Muluh, Responsável pela Vigilância da Poliomielite no Escritório Regional da OMS para a África, esta abordagem orientada pelos dados é fundamental para intervenções de resposta a outras doenças. “O programa da poliomielite utilizou dados para redireccionar ou inovar continuamente as suas actividades. Para qualquer programa que pretenda erradicar uma doença, são essenciais dados robustos.”
Uma reunião da autarquia local com peritos em poliomielite e líderes tradicionais para analisar dados recolhidos das actividades de vacinação em Maideguri, na Nigéria, 2020. ©️ Andrew Esiebo/OMS
Um bebé prestes a ser vacinado durante uma sessão de vacinação de rotina à sua comunidade nómada na Bacia do Lago Chade, 2019. ©️ Christine McNab/Fundação das Nações Unidas
2.
Alcançando todas as crianças com a vacinação
As actividades de vacinação da poliomielite ampliaram a cobertura das campanhas de vacinação.
“Historicamente, o objectivo da vacinação de rotina era alcançar um certo nível de imunidade na população para travar os surtos, mas não o suficiente para eliminar a doença,” afirma o Dr. Pascal Mkanda, Coordenador da Erradicação da Poliomielite no Escritório Regional da OMS para a África. “No entanto, quando os países constataram o êxito do programa da poliomielite no uso de actividades suplementares de vacinação para erradicar a doença, começaram a aprender como ir além do âmbito dos sistemas de vacinação de rotina para acelerar a eliminação do sarampo, da febre amarela e de outras doenças, tirando partido da experiência do programa da poliomielite.”
Nos países que enfrentam desafios específicos na vacinação de rotina, como a Nigéria e a região do Lago Chade, as abordagens especializadas do programa da poliomielite são usadas para alcançar comunidades insulares remotas. Na RDC, foram adaptadas estratégias de vacinação de rotina para enfrentar um surto de poliomielite ao longo do Rio Congo, e na Nigéria e no Sudão do Sul, foram organizadas negociações com as forças armadas para aceder a comunidades com serviços de vacinação de rotina, à semelhança das campanhas de poliomielite.
Hoje em dia, quase 90% do pessoal da OMS que se dedica à vacinação é financiado pelo programa da poliomielite. Os Estados mais frágeis, em particular, são muito dependentes das infra-estruturas e do financiamento do programa da poliomielite para levar a cabo a vacinação de rotina e a vigilância das doenças. Com a redução prevista do financiamento da luta contra a poliomielite em África, será necessário um investimento contínuo para proteger este legado e garantir o acesso universal à vacinação.
Uma mãe numa comunidade nómada com o cartão de vacinas da sua filha, que receberá todas as vacinas de rotina, incluindo a da poliomielite, durante uma campanha de proximidade na Bacia do Lago Chade, 2019 ©️ Christine McNab/Fundação das Nações Unidas
Um profissional de saúde, Awandi Epainette, informa uma comunidade nómada na região do Lago Chade sobre os benefícios das vacinas na protecção das crianças contra uma série de doenças – incluindo a poliomielite, o sarampo, a meningite A e a hepatite B – durante uma campanha de proximidade na Bacia do Lago Chade, 2019. ©️ Christine McNab/Fundação das Nações Unidas
Peter Maritim, laboratory technologist, prepares polio cell cultures ready for extraction at the Kenya Medical
Research Institutes Expanded Programme on Immunization Laboratory, Nairobi, Kenya, 2018. ©️ WHO/L.Dore
3.
Reforçando a vigilância das doenças e as redes laboratoriais
Os esforços de erradicação da poliomielite desenvolveram um sistema robusto e sensível de vigilância epidemiológica na Região Africana, com uma rede de laboratórios bem equipados e milhares de funcionários com formação específica – desde virologistas a agentes comunitários de saúde que detectam casos suspeitos de poliomielite no terreno. Ao longo dos anos, estes sistemas têm sido usados para detectar surtos de outras doenças e permitir uma resposta rápida para conter a sua propagação, sobretudo em zonas com sistemas de saúde mais frágeis.
Na década de 1990, devido à fraca vigilância da saúde pública em África, muitos países na Região sofreram múltiplos surtos de doenças, incluindo de cólera, sarampo e meningite. O sistema do programa da poliomielite para detectar e dar resposta a casos suspeitos da doença foi usado para desenvolver uma estratégia de Vigilância e Resposta Integradas às Doenças (VRID) que reuniu a vigilância, o trabalho laboratorial e outros dados para coordenar as respostas aos surtos em toda a África.
A rede regional de laboratórios e vigilância no terreno da poliomielite também serviu de modelo para a vigilância baseada em casos, o transporte de amostras e os diagnósticos laboratoriais. As redes regionais de laboratórios para o sarampo e a rubéola criadas na década de 2000 basearam-se no modelo da poliomielite e são capazes de confirmar doenças, às vezes em poucas horas.
Peter Maritim, técnico de laboratório, prepara culturas de células de poliomielite para extracção, Laboratório do Programa Alargado de Vacinação do Instituto de Investigação Médica do Quénia, Nairobi, Quénia, 2018. ©️ OMS/L.Dore
Voluntários recebem informações sobre a campanha nacional de vacinação contra a poliomielite
e de distribuição de vitamina A na aldeia de Odienné, na Côte d’Ivoire, 2017. ©️ UNICEF
4.
Desenvolvendo a força laboral da saúde em África
O programa da poliomielite ajudou a colmatar uma das maiores lacunas nos sistemas de saúde de África: a escassez de profissionais de saúde qualificados. O continente alberga 11% da população mundial e carrega 24% do fardo mundial de doenças. No entanto, tem apenas 3% dos profissionais de saúde do mundo.
Milhares de profissionais de saúde e membros das comunidades receberam formação como parte das campanhas de vigilância e vacinação da poliomielite. Estes funcionários têm sido cruciais para o reforço da vacinação de rotina e a administração de novas vacinas e de outros tratamentos durante as campanhas da poliomielite. Por exemplo, o pessoal do programa da poliomielite em Angola distribuiu comprimidos de vitamina A e mosquiteiros tratados com insecticida. No Chade, as equipas da poliomielite desempenharam um papel central na distribuição das vacinas contra a febre amarela e da meningite.
Para além da administração de vacinas e de tratamentos, nos últimos 20 anos, o pessoal do programa da poliomielite usou a sua experiência na preparação e vigilância de doenças noutros grandes surtos incluindo surtos recorrentes de peste em Madagáscar e os surtos recentes de Ébola na Nigéria e na RDC.
Um voluntário do programa da poliomielite brinca com uma criança na aldeia de Odienné, na Côte d’Ivoire, ao mesmo tempo que se certifica de que todas as crianças da aldeia receberam as suas vacinas como parte de uma campanha nacional de vacinação contra a poliomielite e de distribuição de vitamina A, 2017. ©️ UNICEF
Residentes de um campo de deslocados internos usam água de um sistema de furo alimentado
por energia solar financiado pela Rotary em Maideguri, na Nigéria, 2019. © Rotary International
5.
Alcançando comunidades através da mobilização social e da comunicação
O programa da poliomielite em África, como noutras regiões, teve dificuldades em ganhar a confiança das comunidades Em comunidades remotas, marginalizadas ou afectadas por conflitos, a falta de informação sobre a saúde está muitas vezes associada à desconfiança em relação às actividades do governo e das ONG. Em particular, o programa da poliomielite enfrentou situações de recusa de vacinação por causa de boatos e desinformação.
No início, o programa da poliomielite dependeu muito de anúncios em cartazes, na rádio e na televisão para divulgar os dias de vacinação, que muitas vezes não surtiam efeito em comunidades com baixos níveis de alfabetização ou acesso limitado aos meios de comunicação social. O programa desenvolveu rapidamente melhores estratégias e passou a implementar uma comunicação direccionada, conhecida como ‘mobilização social’. Milhares de voluntários, sobretudo mulheres, foram recrutados nas comunidades para falar com os cuidadores sobre a importância da vacinação contra a poliomielite para as crianças. O seu conhecimento do contexto local ajudou a aumentar a aceitação das vacinas e ajudou os programas da poliomielite a adaptarem as suas estratégias de comunicação.
A mobilizadora comunitária voluntária Fatima Umar usa um livro ilustrado para comunicar com a Hadiza Zanna sobre a saúde materno-infantil, a higiene, as doenças evitáveis pela vacinação e os efeitos da poliomielite num campo de deslocados internos em Maideguri, na Nigéria, 2019. © Rotary International
Hurera Idris instala no seu quarto um mosquiteiro doado pela Rotary em Kaduna, na Nigéria, 2019. Crédito: © Rotary International
Estes mobilizadores comunitários desempenham, hoje em dia, um papel crucial nas actividades de prevenção e resposta a outras doenças, como surtos de cólera e sarampo, e na luta contra outros problemas de saúde, como a malnutrição. Em 2020, como parte da resposta à pandemia de COVID-19, uma rede de mais de 7000 agentes comunitários de saúde na Nigéria, a maioria proveniente do programa da poliomielite, tem trabalhado no sentido de educar as famílias em relação à doença e às medidas de prevenção.
“Dependendo do ambiente e das necessidades observadas, tentamos suprir as falhas,” afirma Tunji Funsho, Presidente Comissão da PolioPlus da Rotary na Nigéria. (Leia mais acerca do programa PolioPlus da Rotary aqui).
Uma equipa do Centro de Operações de Emergência apresenta o seu relatório após uma avaliação em Sokoto, na Nigéria, 2017. ©️ OMS
6.
Melhorando a capacidade de resposta aos surtos
A África sofre mais surtos de doenças do que qualquer outra Região da OMS. Em 2018, a OMS e os parceiros apoiaram respostas de emergência a mais de 160 ocorrências de saúde pública em mais de 40 dos 47 países da Região. Com uma experiência e conhecimentos especializados incomparáveis, as equipas da poliomielite têm sido, nos últimos 30 anos, as primeiras no terreno a dar resposta a outras emergências de saúde e surtos de doenças infecciosas que não a poliomielite – desde surtos frequentes de meningite em toda a região do Sahel a surtos de cólera no Zimbabué.
A enorme rede de voluntários comunitários e de profissionais de saúde que fazem parte da equipa da poliomielite, bem como peritos em comunicação, vigilância e logística, tiveram um grande impacto no salvamento de vidas, muito além da poliomielite.
A criação do modelo de Centro de Operações de Emergência (COE) — que funciona como um ‘centro de comando’ central para a tomada rápida de decisões — serviu de inspiração para estratégias de preparação e resposta a surtos de outras doenças em todo o continente. Aplicado pela primeira vez na Nigéria, em 2012, para a poliomielite, o modelo dos COE foi reproduzido no país dois anos mais tarde para conter, com êxito, um surto de Ébola.
Mais recentemente, o programa da poliomielite prestou apoio à resposta à COVID-19, com mais de 2000 peritos em resposta à poliomielite da OMS, UNICEF e Rotary, e com consultores da STOP do Centro de Controlo e Prevenção de Doença dos Estados Unidos da América que trabalham no âmbito da COVID-19 na Região Africana. Um quarto dos funcionários da OMS que trabalham na área da poliomielite está a dedicar mais de 80% do seu tempo aos esforços de luta contra a COVID-19.
Uma Missão de Resposta Rápida da UNICEF entrega consumíveis, incluindo vacinas e gotas orais contra a poliomielite, suplementos nutricionais, materiais de protecção infantil, kits educacionais e artigos de WASH, em New Fangkak, no Sudão do Sul. ©️ UNICEF
Kabir Rabiu, funcionário da UNICEF responsável pelo Centro de Operações de Emergência (COE) em Kano, na Nigéria, responde a perguntas sobre o programa da poliomielite de órgãos da comunicação social visitantes, 2019. ©️ Andrew Esiebo/Rotary International
7.
Implementando quadros de prestação de contas
Os esforços contínuos para melhorar o desempenho do programa da poliomielite conferiu grande relevo às actividades de prestação de contas e monitorização para maximizar os resultados dos recursos disponíveis.
Em 2013, um relatório da GPEI estimou que seriam precisos 250 milhões de dólares americanos por ano, entre 2013 e 2018, para erradicar, com êxito, o poliovírus selvagem da Nigéria. O investimento sem precedentes no programa por doadores como a Fundação Bill e Melinda Gates e o Rotary exigiu que o programa demonstrasse claramente os resultados, prestasse contas e fosse transparente, através de uma avaliação sistemática.
Desde então, foram usados quadros de prestação de contas baseados neste modelo para assegurar a afectação atempada dos recursos e um melhor desempenho. Estes quadros não só transformaram os programas da poliomielite, como foram institucionalizados em todos os sistemas de saúde de África.
Um legado de erradicação
O impacto do programa da poliomielite na saúde pública em África não tem paralelo; vai muito além da poliomielite, englobando todas das áreas dos cuidados de saúde e abrangendo todas as pessoas, desde recém-nascidos em aldeias remotas a líderes políticos. Como tal, o programa transformou as percepções do que o futuro reserva para a saúde em África.
“O programa da poliomielite restaurou a convicção de que a erradicação de doenças é possível,” afirma o Dr. Francis Kasolo, Director do Gabinete da Directora Regional no Escritório Regional da OMS para a África. “É uma questão agora de identificar as doenças prioritárias que as comunidades acham que devemos eliminar – em que é que devemos investir?”
Com a erradicação do poliovírus selvagem na Região Africana declarada em Agosto de 2020, o programa da poliomielite começou a passar o seu pessoal e os seus activos aos países. Serão necessários novos compromissos e recursos para tirar partido deste legado e assegurar que as contribuições do programa da poliomielite para os sistemas de saúde de África não sejam perdidos, mas que, pelo contrário, sejam usados para reforçar a saúde pública para as gerações vindouras.